17 dezembro 2006

Social-democracia - Parte III

O défice ideológico

É bem verdade que os partidos em Portugal necessitam especialmente de rever as suas referências ideológicas.

Aqui há uns anos conheci o sr. Thomas Meyer que tinha sido responsável pela revisão ideológica do programa do Partido Social Democrata alemão. Perguntei-lhe como tinha conduzido o processo e, para minha estupefacção, ele explicou que organizava seminários de fim de semana para os quadros do partido, durante os quais se examinava e discutia complexos textos de Filosofia Política. Helmut Schmidt, que na altura era primeiro ministro, notabilizava-se por aparecer nesses seminários com os textos já cuidadosamente lidos e sublinhados.

Agora que o PSD português deu início ao seu processo de “aggiornamento” ideológico e outros partidos andam a pensar fazer o mesmo, interrogo-me sobre a metodologia que seguirão. Francamente, não estou a ver os políticos portugueses – de qualquer partido – à volta de uma mesa a discutir cuidadosamente as vantagens da teoria do democracia deliberativa de Jürgen Habermas, por comparação com a concepção de justiça como equidade de John Rawls, por exemplo. Mas é bem verdade que os partidos em Portugal necessitam especialmente de rever as suas referências ideológicas. Isso talvez os ajudasse a inovar o discurso e a lançar propostas políticas mais coerentes.

A nossa linguagem ideológica é muito antiga. A designação das principais ideologias políticas modernas – socialismo, liberalismo, conservadorismo – data do início do século XIX, mas as ideias que lhes subjazem são anteriores. A principal referência do conservadorismo é um livro de Edmund Burke, “Reflexões sobre a Revolução em França”, de 1790. O famoso ensaio de Stuart Mill “Sobre a Liberdade” é de 1859 e a obra emblemática do liberalismo económico, “A Riqueza das Nações”, de Adam Smith, é de 1776. O “Manifesto do Partido Comunista”, de Marx e Engels, que o nosso PCP considera perfeitamente actual, é de 1848. Mesmo a obra inspiradora do socialismo democrático e da social-democracia, na qual se reconhecem os nossos PS e PSD, “Os Pressupostos do Socialismo e as Tarefas da Social-Democracia”, de Eduard Bernstein, é de 1899.

Suponho que todos concordam com o facto de que algo se passou no mundo entre estas referências doutrinais e os nossos dias. Talvez seja o momento de dar um “grande salto em frente”, de ultrapassar outras importantes referências do século XX, e de ligar a ideologia dos partidos actuais ao pensamento actual. Imaginemos agora como seria se os partidos políticos portugueses decidissem seguir a metodologia do sr. Thomas Meyer e adoptar propostas ideológicas com base em leituras do pensamento político contemporâneo. Eis algumas propostas.

O Bloco de Esquerda poderia facilmente esquecer o seu trotskismo serôdio e adoptar um pensamento mais livre, mais experimental, juntamente com uma visão multiculturalista e a defesa das “políticas da diferença”. Os quadros do partido poderiam começar por ler Richard Rorty e outros pensadores pós-modernos, com os quais muito se identificariam. Mas deveriam investir, sobretudo, nas leituras que conduzem à celebração da multiculturalidade e da diferença, como a obra de Iris Marion Young, ou ainda a contribuição de Nancy Fraser.

O PCP poderia perfeitamente continuar a defender os trabalhadores contra a globalização neoliberal, mas sacudindo o pó ao marxismo-leninismo. Recorreria a novas referências doutrinais, como o marxismo analítico de John Roemer, talvez sabiamente misturado com o neo-marxismo bastante mais alucinado de autores como Toni Negri, ou Slavoj Žižek.

O Partido Socialista não teria quaisquer dificuldades em encontrar referências. O PS poderia recorrer a textos dos acima citados Rawls e Habermas, eventualmente temperados pelo comunitarismo liberal de Michael Walzer e Amitai Etzioni. É claro que seria bom que o PS se decidisse entre um liberalismo de esquerda e um comunitarismo ou solidarismo liberal, mas os programas partidários tendem a ser suficientemente abarcantes para combinar coisas à partida incompatíveis.

O PSD, tendo nascido como PPD, teria de tomar algumas decisões para adequar o nome à coisa. Será que o PSD pretende continuar a ver-se a si mesmo como social-democrata, ou prefere relançar as suas bases como popular-democrata? Alguns dos dirigentes do partido foram social-democratas, mas os militantes são mais do PPD do que do PSD. Se o PSD quiser manter a social-democracia os seus quadros terão de ler os mesmos autores que o PS e isso coloca alguns problemas de demarcação. Se quiser procurar outros caminhos, o PSD pode enveredar por leituras que condenam a interpretação demasiado expansiva da liberdade nas nossas democracias (Michael Sandel), ou a face imoral do distributivismo e do Estado social (Robert Nozick).

O CDS, que não é nem nunca foi um partido do centro democrático social, poderia assumir-se como um partido popular, ou um partido conservador. Para além do velho Burke, os seus quadros dirigentes deviam reunir-se para reflectir sobre os textos de John Kekes, Irving Kristol, etc. Bom proveito!

João Cardoso Rosas, Professor de Teoria Política
in Diário Económico

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UM SANTO NATAL E QUE 2007 SEJA DE FACTO UM "ANO ÍMPAR"...
 
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