21 setembro 2004

O que faz falta...

O alvo preferido nos últimos anos têm sido os funcionários públicos e, num país de burocratas onde, em média, o custo do funcionalismo é alto e a sua qualidade baixa, tem de reconhecer-se que a escolha foi acertada.
Uma afirmação que pode fazer-se sem risco de contestação séria, a propósito dos problemas das finanças públicas portuguesas, é a de que se trata de questões complexas, sobretudo a nível de capacidade política e de gestão. Como estas escasseiam, vamos assistindo, em sua substituição, a tentativas cada vez mais desesperadas de «simplificar» os problemas.

Uma das simplificações consiste em enunciar princípios correctos, mas aplicá-los de modo errado ou deixar em suspenso a forma de os pôr em prática. Os exemplos abundam, desde o princípio do utilizador-pagador até à afirmação de que o problema do défice só se resolve com crescimento económico. O que fica por esclarecer é o papel das políticas sociais e regionais e o modo como, de facto, se pretende fomentar o crescimento económico. «Cumprir» o PEC, pôr os mais doentes a pagar mais pela saúde, ou reservar as zonas do interior apenas para quem lá mora dificilmente resolverão qualquer problema.

Outra alternativa de simplificação consiste em procurar culpados e em apresentar «provas» das culpas. O alvo preferido nos últimos anos têm sido os funcionários públicos e, num país de burocratas onde, em média, o custo do funcionalismo é alto e a sua qualidade baixa, tem de reconhecer-se que a escolha foi acertada, se nos cingirmos aos critérios políticos de curto prazo. Se, todavia, pensarmos em termos do desenvolvimento do país, de que uma das condições fundamentais é a melhoria da administração pública, teremos de concluir que tornar as suas estruturas e as chefias cada vez mais instáveis e politicamente dependentes não é a forma ideal de o conseguir.

A simplificação mais recente é de ordem quantitativa e traduz-se na afirmação, repetida ao longo dos últimos dias, segundo a qual os encargos com os salários e pensões da função pública e com as transferências sociais absorvem mais de 80% dos impostos pagos pelos portugueses. Quem tenha alguma sensibilidade a estes números, não os considera particularmente espectaculares, atendendo a que as duas grandes rubricas da despesa pública são precisamente o consumo público (cuja componente largamente dominante são os salários) e as transferências (dominadas pelas pensões). Dito de outro modo, esses «mais de 80% dos impostos» pagam, nomeadamente, os salários dos professores, do pessoal dos serviços de saúde, das forças de segurança, dos tribunais, do pessoal diplomático, da administração fiscal, etc., além das pensões e dos subsídios de doença, desemprego e outros, respeitantes à totalidade dos cidadãos.

Racios superiores a 70% não são inéditos nos países desenvolvidos e, num período do recessão, facilmente ultrapassam os 80%. Mais importante é, por isso, discutir os factores estruturais que fazem subir ou descer tal percentagem. Entre eles destacam-se o grau de outsourcing nas tarefas da administração pública e a maior ou menor eficiência desta. Dentro do próprio racio, o peso dos salários relativamente às transferências tem também a ver com a opção de prestação directa do serviço pelo Estado (em particular nos casos da saúde e da educação) ou pelo sector privado, embora continuando o Estado a suportar os respectivos encargos, através de prestações sociais.

Os critérios que deveriam determinar as opções do Estado, tanto em matéria de outsourcing de tarefas administrativas correntes, como quanto à prestação directa de serviços, têm a ver com a eficiência de cada uma, a qual depende de duas condições fundamentais: (i) a existência de concorrência entre os prestadores privados e (ii) a capacidade reguladora e supervisora do Estado para garantir essa concorrência e para assegurar a qualidade e acessibilidade dos serviços prestados.

A verificação destas condições reduziria os custos para o Estado, mas exigiria reconverter a actual administração pública numa entidade de natureza inteiramente diferente, onde o cumprimento de procedimentos burocráticos se tornaria pouco menos que irrelevante, mas onde a capacidade de recolher, tratar e divulgar informação, de gerir pessoas e serviços e de usar de independência e inteligência crítica para avaliar os regulamentos e a sua aplicação passariam a ser essenciais. Outras consequências directas seriam a mudança radical de clientelas políticas e do comportamento dos parceiros sociais.

Esta não é uma solução que possa conter-se num decreto-lei (ou mesmo numa dúzia deles). A redução do peso do Estado que esta autêntica revolução viabilizaria é, não só técnica e organizacionalmente complicada a nível da administração pública, como exige um sector privado que de facto exiba ganhos de eficiência e não esteja apenas preparado para redistribuir as rendas actuais. Exige, afinal, uma maneira diferente de fazer e de usar a política, tanto pelos políticos (centrais e locais) como pelo grupos de interesses privados. Exige estimular a coesão nacional e social, não pela via das bandeirinhas e do futebol, mas criando um Estado em que finalmente os cidadãos possam ter confiança. O objectivo não é fácil de alcançar e os caminhos que vemos seguir não conduzem lá.

Teodora Cardoso in Jornal de Negócios - 21/09/2004

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