31 agosto 2004

Orçamentos Plurianuais...

Um artigo que escrevi em Julho de 2000 concluía com a seguinte afirmação: a convicção de que pode manter-se o status quo no que respeita ao regime de política orçamental [...], confrontado com uma política monetária de não acomodação da inflação, conduzirá o país à crise e impedirá o sector privado de se ajustar competitivamente ao novo enquadramento.
O regime da política orçamental é o que a prática política consagrou ao longo dos anos, subordinado a um enquadramento legal claramente desadequado dos novos condicionalismos da economia. Estes resultaram fundamentalmente da adopção da moeda única e do facto de as despesas e a dívida pública terem já atingido níveis que excluem o contínuo crescimento que o regime orçamental português não só admite mas, na prática, estimula.

Depois desse artigo, assistimos a uma mudança de legislatura, duas de Primeiro ministro, três de Ministro das Finanças e à publicação de uma nova Lei de Enquadramento Orçamental (LEO, Agosto de 2001), que acaba de sofrer a sua terceira alteração (Lei 48/2004, de 24 de Agosto). A agitação política em redor do tema do Orçamento do Estado não podia ter sido maior nos últimos quatro anos. Os resultados dificilmente podiam ser mais escassos. Duas áreas bastam para o provar: a continuada falta de qualidade e transparência das contas públicas e a ausência de uma estratégia de médio prazo, concreta e formalmente assumida.

A acreditar nos jornais, «[o] Orçamento Geral de Estado para 2005 abre a porta à elaboração de orçamentos plurianuais pelo sector público administrativo. A medida - defendida pelo ministro das Finanças, Bagão Félix, ainda antes de assumir a pasta - permite planear a actuação de organismos do sector público, a médio e longo prazo» (Jornal de Notícias, 25-08-2004).

Quer a continuação da notícia, quer o conteúdo da LEO, levam a temer que esta conversão aos orçamentos plurianuais redunde no oposto à adopção de uma estratégia de médio prazo para as finanças públicas portuguesas. De facto, o que é referido é a possibilidade de organismos públicos integrarem nos seus orçamentos «programas, medidas e projectos ou actividades que impliquem encargos plurianuais». Ora, o primeiro princípio a fixar quando se opta por uma estratégia orçamental de médio prazo é o de a distinguir claramente da adopção de dotações orçamentais plurianuais. O que essa estratégia pretende é que as dotações anuais, seja qual for a sua natureza, sejam fixadas no contexto de um horizonte de médio prazo que permita avaliar realisticamente os recursos disponíveis na economia e as diferentes aplicações que lhes podem ser dadas, obrigando assim a definir prioridades políticas claras que, por seu turno, permitam (e exijam) os necessários ajustamentos a nível dos serviços públicos e das expectativas dos agentes económicos.

De forma esquemática, uma estratégia orçamental de médio prazo - que nenhuma das versões da LEO ainda sequer abordou - exige que o processo «bottom up» de definição, pelos diferentes organismos públicos, de planos sectoriais de despesa e de determinação dos respectivos custos, seja subordinado a um processo «top down» que se inicia com a definição de um cenário macroeconómico prudente de médio prazo, prossegue com a escolha de objectivos para a política fiscal, e se conclui com a fixação de limites ao total da despesa pública.

Todos estes passos se referem a um período de vários anos e são complementados pela informação proveniente das diferentes entidades públicas quanto aos seus objectivos, programas e custos. A decisão que culmina no orçamento anual subordina-se aos limites globais de médio prazo (eles próprios dependentes dos objectivos fiscais adoptados) e tem que escolher politicamente entre os objectivos e programas a prosseguir e a que ritmo.

Uma estratégia deste tipo exige, pois, duas coisas: (i) na base, informação adequada ao cálculo de custos e, posteriormente, à avaliação de desempenho, que é uma parte essencial desta abordagem; (ii) no topo, a capacidade de definir prioridades, única forma de conciliar as exigências sectoriais ou locais com as restrições globais e os desígnios da política fiscal.

Não é necessário dizer mais para se tornarem claras as vantagens deste esquema em termos de transparência e de disciplina política e, evidentemente, orçamental. Também não é preciso demonstrar que a «abertura aos orçamentos plurianuais» que a LEO prevê não vai além da última linha do esquema, precisamente aquela que redundou em completos falhanços quando foi adoptada, nesses mesmos termos, no Reino Unido, no Canadá e na Austrália, nos anos 70. Da sua aplicação resultou a possibilidade de os organismos exibirem as suas reivindicações e «wish-lists», alimentando expectativas de acréscimo de despesas a prazo, tornando a gestão destas ainda mais rígida e complexa e acabando por desencadear crises orçamentais graves. O enquadramento macroeconómico optimista em que, a prazo, a retoma sempre se afirma e mantém, as receitas fiscais crescem e os défices desaparecem - à maneira do que temos observado nos Programas de Estabilidade associados ao PEC - foram também parte dessa desastrosa experiência.

Como quem ignora a história está condenado a revivê-la, aqui fica o registo.

Teodora Cardoso in Jornal de Negócios - 31/08/2005

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