27 setembro 2005

Na política não vale tudo...

ll is fair in love and war é um ditado inglês que, em Portugal, foi entusiasticamente estendido à política, através da falta de responsabilização que o nosso sistema tão bem acomoda.
Em tempos de campanha eleitoral, essa característica é levada ao rubro e permite que vejamos, por exemplo, denunciar como arma eleitoral o facto de o governo se preparar para apresentar, dentro do prazo legal (até 15 de Outubro) um orçamento de austeridade que todos os comentadores consideram indispensável e que, pela primeira vez, depois de tanta retórica contra o "monstro", se prepara para atacar a sério as fontes de despesas públicas cujo caudal foi alimentado ao longo dos anos por todos os partidos, tanto no exercício do poder central ou local, como no desinteresse que revelaram pela sua fiscalização, como na legislação que produziram ou apoiaram.
Entre elas encontram-se em lugar proeminente, não o incipiente estado social que tão atacado tem sido, mas sim áreas como a administração local e os regimes especiais da administração pública. A determinação que o governo tem vindo a demonstrar em eliminar as assimetrias adquiridas e o facto de o estar a fazer em pleno período eleitoral precisa, pelo contrário, de ser apoiado e apenas há que criticar-lhe o não ir suficientemente longe no esclarecimento do que está em jogo.
A questão fundamental reside em que, ao longo dos anos, com melhores ou piores razões, mas sempre sem transparência nem avaliação de sustentabilidade financeira, os grupos com capacidade de pressão política usaram e abusaram da lógica da acção colectiva para adquirir benefícios que agora consideram direitos inalienáveis.
Quando se torna claro que o país não pode sustentá-los e, pior ainda, que a sua manutenção estimula o mau uso dos recursos na economia e reduz, por essa forma, a sua capacidade de gerar rendimento e de competir no exterior, é necessário resistir a essas pressões e reconhecer que todos, incluindo os contribuintes, temos de ser solidários no indispensável ajustamento.
Não obstante a retórica contra as despesas, o que vimos até agora foi sobretudo pedir sacrifícios aos contribuintes ou indiscriminadamente aos funcionários públicos, a maioria dos quais está longe de beneficiar das regalias que nos últimos anos se tornou moda atribuir-lhes. Agora o clima está a mudar e a agitação social demonstra-o. Ao governo compete a determinação para manter o rumo, mas à oposição - que tem responsabilidades pelo menos iguais na situação criada - compete mostrar que sabe reconhecê-las e que percebe que os erros têm de ser corrigidos.
Há, pelo menos em tese, dois caminhos para o fazer. Um - que foi tentado no governo Durão Barroso - consiste em não afrontar os grupos com poder de agitação e atacar apenas os que não têm capacidade para se organizar: a preferência pelos aumentos do IVA e pelos congelamentos ilustra esta via. O seu problema está em que, ao não alterar as ineficiências existentes nem os incentivos que as favorecem, este método não melhora a atribuição dos recursos nem a competitividade do país.
O seu êxito dependeria, por isso, exclusivamente da melhoria do enquadramento conjuntural e - segundo alguns terão acreditado - da atracção de investimento e de ajudas externas que decorreria da retórica contra as despesas sociais e os impostos. A melhoria da conjuntura internacional que acabou por ocorrer apenas revelou a incapacidade competitiva da economia portuguesa. Entretanto o défice orçamental agravou-se e as expectativas favoráveis tornaram-se em simples miragens.
O actual governo está a tentar o caminho alternativo, à partida mais difícil, mas - como acontece nas aplicações financeiras - com um retorno mais elevado. Dada a maioria absoluta de que goza, mais do que uma opção, esse é o seu dever. O maior risco político que corre é o de, se for bem sucedido, ver a oposição argumentar com os sacrifícios que impôs para ganhar o poder e colher os frutos da sua política. Foi exactamente o que sucedeu à saída da crise de 1983-84, mas um político sério não pode aspirar à gratidão a curto prazo do eleitorado. Se o país ganhar, os seus méritos acabarão por ser reconhecidos.
Para o país ganhar importa, porém, não só que os problemas imediatos sejam resolvidos, mas também que se mudem as regras do jogo que estiveram na sua origem. É aí que para já se situa a principal falha da actual estratégia política. Não basta, de facto, lutar pela correcção das assimetrias ineficientes e injustas que se acumularam ao longo dos anos. É indispensável tornar muito claros os mecanismos que permitiram essa acumulação e assegurar a sua eliminação.
A esse propósito só posso reiterar o que afirmei neste mesmo local em Junho: continua a faltar a publicação do inventário completo dos regimes especiais praticados na administração pública (central, regional e local) e nas empresas públicas e de capitais públicos ou municipais, bem como a determinação de obrigatoriedade de publicação de todas as alterações futuras a que sejam sujeitos, de forma clara e acessível a todos os cidadãos.
Uma tal medida começará por estimular a objectividade do debate e por eliminar o aspecto odioso da denúncia contra este ou aquele grupo profissional, concitando o apoio para as correcções necessárias e dissipando o nevoeiro que a comunicação social tem contribuído para adensar nesta matéria. Além disso, a par com a adopção de uma óptica plurianual séria no processo orçamental (em vez do arremedo actualmente consagrado no Relatório sobre a Orientação da Despesa Pública), tornará muito mais difícil o regresso ao passado logo que a situação conjuntural da economia o permita. O país acabará por agradecer.

Teodora Cardoso in Jornal de Negócios, 27/09/2005

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