14 janeiro 2005

País cabisbaixo...

«Embezerra, país, que bem mereces. Prepara, no mutismo, teus efes e teus erres». Alexandre O’Neill

Vou à estante e tiro o livro. Os meus livros estão alinhados consoante as amizades dos autores entre si. Aquilino está ao lado de Manuel Mendes; este, junto de Carlos de Oliveira, Alves Redol, Manuel da Fonseca, Mário Dionísio, Armindo Rodrigues, Joaquim Namorado, José Gomes Ferreira, Augusto Abelaira. O livro que tiro, «Poesias Completas», de Alexandre O’Neill, encosta-se a Cesariny, Herberto, Eugénio, Ruy Belo, Luísa Neto Jorge, Ramos Rosa, Sophia. Amizades nuns; correspondências electivas, noutros. Qualquer destes amava Portugal de coração sangrando. Qualquer deles o criticava, nenhum deles permitia que outrem, que não eles, o criticasse.

«País onde qualquer palerma diz, / a afastar do busílis o nariz: / - Não, não é para mim este país!»

Foi aquela gente, e outra, numerosa, vária e desvairada, que desenhou a fisionomia da pátria, que traçou os perímetros morais, éticos e estéticos daquilo que se compreende como o bragal da nossa peculiar identidade. Eis porque me irrita, até à ira, o desprezo manifestado por «qualquer palerma», quando zurra imprecações contra o que somos, sem nada fazer para que sejamos outra coisa, presumindo, impante, uma superioridade de que são, apenas, adorno e ridículo.

«País engravatado todo o ano / e a assoar-se na gravata por engano».

O O’Neill viu esta terra e seus andantes melhor do que qualquer outro, exactamente porque nunca soube viver nem amar em outro sítio. Folheie-se, com detenção, estas páginas inolvidáveis e acorde-se que o grande poeta falou longamente de si para dizer de nós o que recusávamos dizer-nos. A metafórica clareza com que o O’Neill se expõe invectiva, afinal, a cultura padreca, o provincianismo bacoco, o hílare cosmopolitismo de quem entremeia o proseio com locuções inglesas, citações abstrusas, a indecência de quem mente, a falta de integridade de quem vende a caneta a troco de um prato de lentilhas.

«País tunante que diz que passa a vida / a meter entre parêntesis a cedilha (?) País desconfiado a reolhar por cima / dum ombro que, com razão, duvida».

Quase deixámos de viver: existimos, apenas, entregues a arrivistas que nada sabem de nós, e que, deliberadamente, alimentam a nossa parte mais retrógrada, mais sujeita à superstição vaticana, mais atreita à submissão por ignorância, medos ancestrais, temores reverentes. Ouvimos Paulo Portas ou Pedro Santana Lopes, mas também José Sócrates ou António José Seguro; e, igualmente, Cavaco Silva ou Durão Barroso e António Guterres, e compreendemos que imaginam falar para beócios, para débeis mentais. Uma gentalha que não nos trata como adultos, cujas ligeirices de linguagem correspondem aos níveis do que, rigorosamente, pensam.

«País pobrete e nada alegrete, / baú fechado com um aloquete, / que entre dois sudários não contém senão / a triste maçã do coração».

Roubam-nos a alegria, carregam-nos de desdita e gritam para que sejamos felizes. Nos trinta anos de democracia, em apenas dois deles pudemos ser proprietários do nosso destino. O que fizemos, durante esse lacónico período, foi exaltante. Como disse, um dia, Maria Alzira Seixo, até as palavras começaram a possuir um outro e luminoso sentido. Não há torção na história capaz de revirar a natureza dos factos. A procura da justiça, da equanimidade social e do justo equilíbrio das situações foi um trajecto abruptamente interrompido. Só assim se tornou possível que um cavalheiro receba, sem corar!, 3.600 contos mensais de reforma, após vinte e um meses de exercício de funções, e milhares e milhares de portugueses, depois de quarenta anos de trabalho, aufiram reformas de 30 e 40 contos!

«Que Santa Sulipanta nos conforte / na má vida, país, na boa morte!»

O que nos preparam são mais anos e anos de dificuldades. Mais anos e anos de canga, de tormentos, de sacrifícios, de angústia, de desespero. Décadas perdidas, corrupção e roubo e latrocínio impunes; desemprego e miséria. O ministro Sarmento vai para o Bom-Bom; nós, para o Mau-Mau. Ser português não é uma nacionalidade: é um pedregoso ofício.

«A Santa Paciência, país, a tua padroeira, / já perde a paciência à tua cabeceira».

Regresso a Alexandre O’Neill

Baptista Bastos in Jornal de Negócios - 14/01/2005

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